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sexta-feira, 30 de março de 2018

Um "Andarinho"


Crônicas da vida - Um "Andarinho"






Hoje vou iniciar uma série onde vou narrar fatos da vida que presenciei ou que me contaram e que entendo que tenham algum valor pra vida, afinal aqui nessa blogosfera nossa visão é integral: corpo, mente e espírito e nada como os fatos, as histórias, as percepções reais para nos motivar, nos ensinar, nos conscientizar …


Um “andarinho”


Celestina e seu marido Franscisco, carinhosamente chamados de Tina e Chico, trabalham com pintura de residências e pequenas reformas.

Chico já com 70 anos, todo dia pega sua bicicleta e segue para o local onde está trabalhando.

Tina cuida de detalhes da casa, de gente necessitada, de todo tipo e condição, e depois segue para o local para ajudar o Chico.

Para alguns trabalhos eles contratam ajudantes, dependendo do volume do mesmo e da pressa do contratante.

Certa vez contrataram Mauro, um “andarinho”, assim o chamavam devido à sua pouca formação e até mesmo a um pouco de surdez da Tina.

Chico é meio devagar nas ideias, na percepção das realidades, nas decisões da vida.

Viúvo, antes de conhecer Tina e pai de Paulo que não se preocupa muito com o trabalho. Parece até estar esperando a herança pra viver de “renda” ( o aluguel da propriedade onde moram).


A Mardita!



Mauro ajudou em muitos trabalhos e se tornou “amigo” de Tina e Chico, porém não tinha onde viver ou morar e era usuário de tudo o que muitos que vivem na rua usam: drogas, alcool, etc....

Certa vez Mauro chegou tão “tocado” no trabalho que teve que voltar pra “casa”. Nessa altura Tina tinha providenciado um quarto numa pensãozinha onde Mauro acomodou suas coisas que não eram muitas (uma bicileta, algumas poucas roupas e uma caixa de documentos).

Mas no caminho de casa achou um bar, e existem muitos bares nos caminhos da vida de todos nós.

O bar no caminho de Mauro vendia a mardita cachaça, que é muito boa pra culinária e até para uns goles conscientes (de quem realmente tem consciência), mas muito ruim pra quem talvez até com consciência mas sem esperança, perspectiva, ou com doenças do corpo e da alma utiliza a mardita como fuga, ou outro tipo de explicação que muitos tentam dar.... e poucos conseguem entender.

Bebeu tanto que entrou em coma alcoólica.

Alguém o recolheu ao Pronto Socorro, de lá ligaram pra Tina.

Havia um papel com seu telefone no bolso de Mauro. Tina providenciou internação numa clínica de recuperação e Mauro conseguiu ficar sete meses sem beber!

Voltou a ajudar Chico e Tina nas empreitadas quando necessário, mas depois de um tempo sumiu.

Foi despejado da pensão, por falta de pagamento, embora Mauro se vangloriava de ter uma poupança de dezoito mil. Fala-se que uma mulher o enganou servindo-o de alguma maneira mas ficando com a grana toda.

Mauro voltou a andar, fora do ninho ou no ninho, afinal era um “andarinho”.


O que de sempre às vezes deixa de ser!



Passado algum tempo Tina recebe um telefonema:

  • por favor dirija-se ao Pronto Socorro. O senhor Mauro chegou por aqui com fortes dores e precisa passar por uma cirurgia. Só encontramos um papel com seu telefone no bolso de Mauro. Não encontramos familiares.

Tina pensou ser o pronto socorro da cidade onde morava e com pressa arrumou-se e foi até o PS onde ninguém sabia de nada.

De imediato não passou pela cabeça de Tina que seria na cidade vizinha. Agoniada tentou tudo o que conhecia, mas não encontrou onde estava Mauro.

Chico, como sempre, não ligou o lé com cré e não percebeu a gravidade da situação. Ele conhecia uma irmã de Mauro que morava numa cidade há mais de 500 Km de distância, mas não sabia como acioná-los, nem seus nomes, nem nada....

Certa vez Tina já tinha ajudado Mauro que estava com duas facadas na barriga. Segundo ele era uma tentativa de suicídio, mas ninguém sabe até hoje o que realmente aconteceu. Como sempre Mauro saía bem da situação e voltava para sua vida.

Mas desta vez a história teve um final diferente.

Tres dias depois o telefone toca novamente procurando por Tina:

  • dona Tina, infelizmente o senhor Mauro faleceu e encontra-se no IML.

Depois de uma breve conversa descobriu-se que era na cidade vizinha. Não havia mais o que fazer!

Não para a vida, mas ainda havia algo para a dignidade!

Dignidade




Dignidade é algo que devemos a todos.

Mesmo aos que consideramos indignos!

Mesmo aos que tem trajetos de vida com o qual não concordamos, ou não entendemos, ou que explicamos mas não cabe na razão, porque afinal existem razões que a própria razão desconhece!

Mauro fora órfão de mãe logo aos dois anos de idade e fora criado por essa irmã que Chico conhecera.

Explica? Justifica? Conforta?

Acho que sim e acho que não! Você me entende?

Tina, que sempre dignificou os necessitados, que sempre ajeitou as situações de alguns desprezados, rejeitados, indesejados...dignificou a morte de Mauro.

Foi até o IML. Reconheceu Mauro. Como enterrar alguém sem família? É preciso autorização do delegado.

Foi até a delegacia. Esperou pelo delegado que estava em horário de almoço.

  • O que eu tenho a ver com isso?

Explicou a situação e conseguiu a autorização.

Voltou ao IML. Agora é preciso ir ao serviço funerário.

E como providenciar as coisas sem dinheiro?

O servidor do IML deu o caminho das pedras. Procure fulano de tal....

Caminhou até o serviço funerário. Fulano de tal estava ocupado. O outro disse que custariam setecentos reais!

Desconversou e deu uma volta olhando o preço dos demais “envelopes de madeira”. Tinha um de trezentos e cincoenta e dois reais. Porque será que o homem falara setecentos?

Fulano de tal desocupou-se. Atendeu com respeito e dignidade aquela que buscava dignidade para um “morto indigno”.

  • A senhora quer com flores? Se for com flores só dá tempo pra amanhã. Sem flores a gente pode enterrar agora mesmo. Mas tem que ser agora. Só temos mais uma hora.....

Foi sem flores mesmo. Mas como faço pra chegar ao cemitério?

  • falo com o motorista e a senhora vai de carona!

Dignidade mesmo no carro fúnebre!

Foram ao IML, retiraram o corpo, levaram ao cemitério. Sem flores.

Sem flores? Pera aí......Moço espera um pouquinho.

A floricultura do cemitério estava fechada. Bateu tanto que alguém apareceu.

Um pequeno vazinho de flores.

Segue o enterro. Tina sempre achou tristes aqueles enterros sem ninguém acompanhando e agora lá estava ela numa situação onde era apenas uma conhecida do morto. Uma conhecida que lhe dava agora um último momento de dignidade.

Os coveiros estavam realizando um outro sepultamento e ao perceberem a situação pediram aos acompanhantes deste para ajudarem a carregar o caixão daquele!

Dignidade solidarizada!





No local da cova. Moço, pode abrir um pouquinho só o caixão?

Poder não pode, mas devido à situação.....

Chorando, Tina despetala a flor do vazinho sobre o corpo de Mauro.

  • Seu burro, eu falei pra você ficar longe da mardita cachaça!!!

Dignidade novamente, mesmo em meio a palavras mais duras.

Choro, pela ausência da dignidade, pela indignação diante de situações da vida, mesmo na presença da morte, mas que devolvia dignidade...

Chico não fora junto, não percebera novamente a situação. Tina resolvera, como sempre!

Depois disso uma semana de tentativas para encontrar a família. Finalmente um número de telefone do interior.

Tina foi até uma vizinha que tinha um plano de interurbanos sem custo e ligou.

Alguém atendeu e ao perceber que Tina queria falar de Mauro logo foi gritando:

  • mãe, vem cá. Notícias do tio Mauro!!!

Logo Tina foi falando:

  • ei, não se alegre não que a notícia é ruim!

Depois de explicada a situação a família prometera vir buscar as “coisas” de Mauro. E como não podia deixar de aparecer na história perguntaram a Tina:

  • ele tinha uma poupança né?

Dignidade que o dinheiro não trouxe. Ninguém sabe se o dinheiro existe ou não. Pelo menos não a Tina nem mesmo o Chico, que nem sabe cobrar direito pelos seus serviços.

No dia de voltar ao cartório para pegar a certidão de óbito Tina levou uma cesta de queijadinhas preparadas com esmero. Deu um pouco delas pra cada um que a ajudou no processo.


Dignas queijadinhas promotoras do reconhecimento da dignidade!




Nota: os nomes verdadeiros dos personagens desta história foram alterados para preservar-lhes.... a dignidade.